Silent Hill: Shattered Memories - Análise
02/03/2010 16:45
Nesta releitura do primeiro game da série, nem tudo é o que parece ser...
Por: Leonardo Teixeira
Silent Hill nunca foi o tipo de franquia que se contentou em usar da mesma fórmula ou em atender aos formatos pré-inseridos por outros games. Sua fama mesmo surgiu do seu formato incomum até então: no lugar do terror escrachado e sanguinolento de games como Splatterhouse ou Resident Evil, a Konami introduziu um tipo de horror difuso e psicológico, levado à cabo por uma trama repleta de temas maduros que foge do vulgar. Desta vez, a desenvolvedora Climax resolveu virar de cabeça pra baixo o universo de Silent Hill, em uma releitura do primeiro game da série que, surpreendentemente, se parece muito pouco com o material original. A grande diferença aqui, entretanto, está em um gameplay possivelmente diferente de tudo o que você já viu. Romper com barreiras não é exatamente a coisa mais segura de se fazer, principalmente em uma franquia com peso e uma fiel legião de fãs, e a questão acaba sendo mesmo se a nova mecânica vale ou não a pena. Descubra, se tiver coragem.
Pensando em você
Shattered Memories começa em um tom bem familiar. O viúvo Harry Mason e sua filha estão em uma viagem para Silent Hill, uma pacata, porém misteriosa, cidade de veraneio, onde passarão alguns dias juntos. Mason acaba sofrendo um acidente automotivo e acorda em algum lugar de Silent Hill, sem vestígios do paradeiro de sua filha e, convenhamos, de si próprio. A partir daí o trágico e tenso conto de Shattered Memories dá início, apresentando ao jogador uma série de personagens convincentes e um cenário que, em muitos sentidos, é um reflexo da psique e dos conflitos familiares do personagem principal. Na verdade, é interessante perceber como a trama surreal gira muito mais em torno de uma busca metafísica de Mason por si mesmo do que do sumiço de sua filha. O roteiro é bem costurado (tanto quanto algo tão abstrato e aberto à interpretações possa ser) e a fábula de um homem lentamente perdendo sua noção do que é ou não real deixa escapar algumas cenas dignas de um filme de David Lynch. Infelizmente, o jogo parece às vezes construir relação com temas que ele próprio não se dá ao trabalho de explicar, deixando alguns personagens e acontecimentos a deriva.
Ao redor da narrativa principal, flashes constantes cortam para o que seria uma série de consultas psicanalíticas pelas quais Harry supostamente passou como tratamento. Elas são uma série de curtos mini-games e sessões de pergunta e respostas que chegam a usar de forma muito criativa o sensor de movimento do Wii. Além dessa função óbvia, as consultas servem para construir um perfil psicológico do jogador, uma mecânica que facilmente é a mais interessante do jogo todo: suas respostas e ações aqui tem conseqüência no mundo de Silent Hill. O que significa que o jogo dependerá tanto da trama do personagem principal quanto da sua própria: sua psique, sua sociabilidade e até mesmo sua sexualidade (e o jogo é estranhamente meticuloso nesse ponto) moldarão sua experiência com o game. As personagens às vezes entrarão em cena com roupas diferentes, os adversários mudam de forma e um ou outro momento terá um viés diferente. Algumas ações no próprio cenário de jogo parecem também influenciar seu perfil psicológico, porém estas perdem um pouco em sentido (se eu fiquei olhando minutos para uma foto de garotas com números na barriga foi menos porque sou um voyeur do que porque estou atrás de pistas para um quebra-cabeça!). No fim das contas, o sistema é muito curioso e faz do game um jogo gostoso de se fechar diversas vezes, sempre tentando respostas diferentes.
O game continua sendo um Survival Horror com pitadas de adventure em um ambiente totalmente 3D, então aqui não houveram grandes mudanças. Suas principais ferramentas de jogo são uma lanterna, que ajuda a vistoriar os ambientes escuros da cidade em busca de chaves e pistas para continuar em frente na aventura e um telefone celular, que serve como mapa, meio de comunicação com outros personagens e pode capturar cenas fantasmagóricas com a câmera. Os quebra-cabeças de Shattered Memories deixam um pouco a desejar: ao invés de exigir raciocínio (e até repertório cultural denso no caso de SH3), eles raramente fogem da velha rotina de achar algum item na sala que esconda alguma chave. Pra seu próprio mérito, todos os quebra-cabeça fazem sentido e se mesclam bem ao ambiente de jogo. Além da estrutura geral do gameplay, a famigerada realidade alternativa e seus demônios também fazem seu retorno. Em Shattered Memories, a transição entre os dois mundos é representada pelo gelo: quando Harry Mason adentra na outra dimensão, todo o cenário ao redor muda de cara, todas as texturas são cobertas por lâminas congeladas e inimigos cambaleantes andam por todo lado. A dualidade desta vez causa alguns sérios problemas. Diferente do que ocorria em outros Silent Hill, é raro notar elementos do mundo paralelo adentrando no mundo real, o que significa concretamente que o jogo tem bem delineadas áreas de ação e de exploração.
Quando se entra no mundo congelado, é terror puro: Harry é incapaz de atacar de qualquer forma seus perseguidores. A única saída é correr, e tentar sobreviver ao labirinto da forma mais rápida o possível. O design desses estágios é confuso por querer – não há sensação mais aterradora do que estar perdido fugindo das bizarras crias de Silent Hill – mas pode se tornar desnecessariamente frustrante para o jogador, principalmente nas fases finais. O único mapa disponível é o GPS do celular de Harry, cuja ativação consome tempo real no cenário do jogo e te deixa completamente indefeso por aterradores e preciosos segundos. Harry pode usar o brilho de sinalizadores ou derrubar objetos do cenário para retardar o avanço dos inimigos, mas a falta de opções ofensivas pode deixar alguns jogadores descontentes. É sem dúvida um conceito interessante, ainda mais para um jogo de horror, mas é sua aplicação no game que deixa a desejar, justamente porque depois da tensão do mundo de gelo, o jogo não apresenta nenhum tipo de ação ou perigo. As porções do mundo real são centradas em exploração, interação com o ambiente e solução de problemas, sem nenhuma tensão presente. A solução pode ser amigável para o usuário, mas mata todo o terror. O medo no mundo de gelo é algo puramente visceral, emergente e temporário, existente sem dúvida, mas por tempo limitado. Quando se deixa a realidade alternativa para trás, não importa quantas sombras ou móveis se movam sozinhos ao fundo, quão escuro seja o cenário ou a psique do personagem, aquele tipo de terror constante é apagado porque o jogador sabe muito bem que nada o ameaça para além do mundo de gelo. É ao apagar boa parte do horror psicológico com um script e cenas de impacto bem delimitadas e cortadinhas que Shattered Memories comete sua maior falha. Isso e o fato de quem em muitas cenas no mundo de gelo, o medo é suprimido pela frustração deixada por um design labiríntico que se torna rapidamente uma rotina de tentativa e erro.
Terror em zero absoluto
Shattered Memories é um belo e surpreendente pedaço de software, ainda mais levando em consideração que o game foi lançado para o Wii. Os visuais são um de seus maiores pontos fortes: as texturas são muito bem definidas, com um nível de detalhe que possibilita até mesmo que jogadores leiam cartazes e placas de sinalização com clareza. A arquitetura da cidade é muito bem construída e se transforma num emaranhado louco de corredores quando Mason adentra a realidade paralela. A transição inclusive permite alguns momentos de colírio visual bem impressionantes, com o gelo derrubando postes e invadindo paredes com violência. A própria camada gelada é repleta de efeitos de deformação e de reflexo, criando de fato um ambiente novo, senão um pouco assombrado por repetitividade. A transição não é tão gritante quanto a dos outros jogos – pessoalmente, preferimos o contraste gritante entre o branco e o vermelho ferrugem dos games anteriores – mas isso é mais uma questão de gosto pessoal. Embora haja um clima de pouca saturação, o game é repleto de cor e personalidade. As personagens todas se movem de forma realística e apresentam expressões convincentes, embora não deixem de ser levemente cartunescas. Novamente, o nível de detalhe nas ações e nos modelos tridimensionais é de uma qualidade rara de se ver no Wii. O ponto fraco fica a cargo dos inimigos. Embora eles assumam formas diversas de acordo com a psique do jogador, sua variedade é muito pequena se comparada à exótica fauna de criaturas que habitam outros games da série. A sensação é de mesmice, mesmo nos momentos em que esses monstros tomam as formas mais absurdas.
Akira Yamaoka é responsável novamente pela trilha sonora deste game, apresentando seu velho tom industrial e sentimental em faixas que realmente ajudam a construir o clima de Shattered Memories. Sua qualidade musical é concisa e um raro exemplo de uma trilha profundamente ligada aos elementos visuais e ao gameplay, o que é dificilmente falar algo novo: fãs da série já sabem o que esperar da música de um Silent Hill. Infelizmente, este pode ter sido o último trabalho de Yamaoka para a série, que também já perdeu boa parte de seu time de desenvolvimento original. Uma pena, de fato. As faixas do compositor japonês são complementadas por um sólido trabalho de dublagem e diálogos de uma escrita atenciosa, que mudam de acordo com diferentes perfis psicológicos. Os gasnidos às vezes mecânicos dos adversários se mesclam à música ambiente e ao som dos passos de Harry para criar uma atmosfera sonora no mínimo inquietante.
É uma sina daquele que nunca para em lugar nenhum saber que nunca vai achar onde reside seu verdadeiro espírito. Desde Silent Hill 4 a série vem pisando em seus próprios calos para tentar se redefinir e obter o sucesso das viagens filosóficas e o clima surreal de Silent Hill 1 e 2, que tornaram a franquia um verdadeiro marco da indústria. Com a debandada do time oriental e a possível despedida de Akira Yamaoka, Silent Hill talvez esteja afundando na metafórica névoa que povoa sua cidade fictícia, cuja única saída parece estar na capacidade criativa de times como o da desenvolvedora Climax. Shattered Memories está longe de ser um jogo ideal, mas está tão povoado de boas idéias (a implementação do perfil psicológico, o uso do Wiimote e uma trama totalmente biruta) que não dá pra não deixar de falar bem desta pequena jóia do Wii. O jogo pode sim ter cenas repetitivas dentro de curtas 5 a 7 horas de jogo, mas vai te ensinar muito mais sobre Silent Hill – e talvez sobre si mesmo – do que muitos outros jogos da série. Recomendado.
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